sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Entender


Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

Clarice Lispector

domingo, 22 de janeiro de 2012

Vladimir Herzog


Em 19 de abril de 1976, deu entrada na Justiça Federal de São Paulo, sendo distribuída para a 7ª Vara Cível, uma ação declaratória intentada por Clarice Herzog e seus filhos Ivo e André, contra a União Federal, pleiteando que fosse declarada a responsabilidade da União pela prisão, torturas e morte do jornalista Vladimir Herzog, marido e pai dos autores.
A inicial relatou que Vladimir era brasileiro naturalizado, professor e jornalista da TV Cultura – Canal 2 e que na noite de 24 de outubro de 1975 compareceu às dependências do DOI/CODI do II Exército, por solicitação de seus agentes, a fim de prestar esclarecimentos.
Fizeram-no apresentar-se no dia seguinte, à Rua Tomás Carvalhal, 1.030, na capital paulista. No final da tarde do mesmo dia, o Comando do II Exército fez distribuir nota na qual comunicava a morte de Vladimir Herzog, e entre outras inverdades dizia que o jornalista “admitiu exercer atividades no PCB; que, por volta das 15 horas, deixado, sozinho, em uma sala, redigiu declaração dando conta de sua militância no Partido Comunista; que, aproximadamente, às 16 horas, ao ser procurado na sala onde ficara, foi encontrado morto, enforcado em uma tira de pano”.
A nota afirmava que, solicitada a perícia, pelo técnicos foi constatada a ocorrência de suicídio e que “o cadáver de Vladimir Herzog foi encontrado, junto à janela, em suspensão incompleta e sustido pelo pescoço, através de uma cinta de tecido verde” e que “o traje que vestia o cadáver compunha-se de um macacão verde de tecido igual ao da referida cinta”.
O fato provocou a maior repercussão em todo o país.
Em 30 de outubro de 1975, o general-comandante do II Exército instaurou inquérito policial para apurar as circunstâncias em que ocorreu o “suicídio” do jornalista Vladimir Herzog, que concluiu, como era esperado, pela ocorrência de suicídio.
Ocorre que Rodolfo Konder compareceu, espontaneamente, no dia 7 de novembro de 1975, às 16 horas ao escritório de advocacia dos drs. José Carlos Dias, Maria Luiza Flores da Cunha Bierrembach, José Roberto Leal de Carvalho e Arnaldo Malheiros Filho, no centro de São Paulo, e ali, na presença dos referidos advogados e, mais ainda, do dr. Prudente de Moraes, neto, do prof. Gofredo da Silva Telles Jr., do dr. Hélio Pereira Bicudo e do padre Olivo Caetano Zolin, prestou declarações que esclareceram a morte de Vladimir Herzog.
“Às seis horas da manhã do dia 24 de outubro do corrente, tocaram a campanhia de minha casa, e, quando fui atender, vi que eram três agentes da Polícia, os quais me disseram que eu deveria acompanhá-los para prestar alguns esclarecimentos. Fui levado numa caminhonete até as dependências do DOI, na rua Tomás Carvalhal, 1.030, endereço este que vim a conhecer posteriormente. Na estrada colocaram-me um capuz de pano preto na cabeça e me levaram para o interior do DOI. Lá dentro me fizeram tirar a roupa e me deram um macacão do Exército, e eu fiquei sentado num banco com o macacão e o capuz. Fiquei cerca de uma hora esperando, tempo que eu não posso calcular com certeza por terem me tirado o relógio, e fui chamado para o interrogatório. Fui levado para o primeiro andar, pois estava no térreo, e alguém começou a me fazer perguntas sobre minhas atividades políticas. Esta pessoa eu não posso identificar porque eu estava com o capuz na cabeça. Ela começou a se exasperar e me fazer ameaças, porque não estava satisfeita com as respostas que eu dava, e chamou umas duas pessoas para a sala de interrogatório, pediu a uma delas que trouxesse a “pimentinha”, que é uma máquina de choques elétricos e, a partir daí, eu comecei a ser torturado. Uma pessoa que mais tarde pela voz eu identifiquei como o chefe da equipe, e era forte, barrigudo, moreno, de cara rasgada. Este homem que batia com as mãos e gritava que ele era um anormal, o que eu achei muito estranho. Depois instalaram nas minhas mãos, amarrando no polegar e no indicador as pontas de fios elétricos ligados a essa máquina; a ligação era nas duas mãos e também nos tornozelos. Obrigaram-me a tirar os sapatos para que os choques fossem mais violentos. Enquanto o interrogador girava a manivela, o terceiro membro da equipe, com a ponta de um fio, me dava choques no rosto, por cima do capuz e, às vezes, na orelha, para isso levantando um pouco o capuz, para que o fio alcançasse a orelha. Para se ter uma idéia de como os choques eram violentos, vale a pena registrar o fato de que eu não pude me controlar e defequei, e, freqüentemente, perdia a respiração. (...)
No sábado de manhã, percebi que Vladimir Herzog tinha chegado. Como o capuz é solto, por baixo dele, quando a vigilância não é severa, pode-se ver os pés das pessoas que estão perto. Ao meu lado estava sentado George Duque Estrada, o Estado de S. Paulo, e eu comentei com ele que Vladimir Herzog estava ali presente, isto porque Vladimir Herzog era muito meu amigo e nós comprávamos sapatos juntos, e eu o reconheci pelos sapatos. Algum tempo depois, Vladimir foi retirado da sala. Nós continuamos sentados lá no banco, até que veio um dos interrogadores, levou a mim e ao Duque Estrada a uma sala de interrogatório no andar térreo, junto à sala em que nós nos encontrávamos. Vladimir estava lá, sentado numa cadeira, com o capuz enfiado e já de macacão. Assim que entramos na sala, o interrogador mandou que tirássemos os capuzes, por isso que nós vimos que era Vladimir, e vimos também o interrogador, que era um homem de 33 a 35 anos, com mais ou menos 1,75 metro de altura, uns 65 quilos, magro, mas musculoso, cabelo castanho-claro, olhos castanhos apertados e uma tatuagem de uma âncora na parte interna do antebraço esquerdo, cobrindo praticamente todo o antebraço. Ele nos pediu que disséssemos ao Vladimir ‘que não adiantava sonegar informações’. Tanto eu como Duque Estrada, de fato, aconselhamos Vladimir a dizer o que sabia, inclusive porque as informações que os interrogadores desejavam ver confirmadas já tinham sido dadas por pessoas presas antes de nós. Vladimir disse que não sabia de nada e nós dois fomos retirados da sala e levados de volta ao banco de madeira onde nos encontrávamos, na sala contígua. De lá, podíamos ouvir nitidamente os gritos, primeiro do interrogador e depois de Vladimir e ouvimos quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a “pimentinha” e solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio, e os gritos de Vladimir se confundiam com o som do rádio. Lembro-me bem que durante esta fase o rádio dava a notícia de que Franco havia recebido a extrema-unção, e o fato me ficou gravado, pois naquele mesmo momento Vladimir estava sendo torturado e gritava. A partir de determinado momento, a voz de Vladimir se modificou, como se tivessem introduzido alguma coisa em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem posto uma mordaça. Mais tarde os ruídos cessaram. Depois do almoço, não sei exatamente a que horas, o mesmo interrogador veio me perguntar sobre uma reunião política na minha casa, realizada em 1972, com a presença de um homem de cabelos grisalhos. Eu não me lembrava dessa pessoa, embora me lembrasse de um único encontro realizado em minha casa naquele ano, com a presença de uma outra pessoa, esta de cabelos escuros. O interrogador saiu novamente da sala e dali a pouco voltou para me apanhar pelo braço e me levar até a sala onde se encontrava Vladimir, permitindo mais uma vez que eu tirasse o capuz. Vladimir estava sentado na mesma cadeira, com o capuz enfiado na cabeça, mas agora me parecia particularmente nervoso, as mãos tremiam muito e a voz era débil.”
“Que o declarante, da mesma forma que todos os outros presos que teve oportunidade de ver nas dependências do DOI, foi deixado apenas com o macacão, o capuz e os sapatos, sendo que das pessoas que usavam sapatos com cordão para amarrar os cordões eram retirados, não ficando nenhum instrumento que pudesse ser usado contra a vida.”
“Que quando iniciou-se a tortura de Vladimir o declarante, estando na sala ao lado, chegou a ouvir sons de pancadas que lhe eram desferidas.”
Vladimir Herzog foi cruelmente torturado, e, depois disso, redigiu a declaração que o comprometia com agremiação política ilegal. O fato de haver rasgado o papel comprova que repudiou totalmente a suposta confissão, obtida mediante métodos violentos.
Ademais, não poderia ter se suicidado com o cinto do macacão, pois, segundo Rodolfo Osvaldo Konder, “o macacão que lhe deram para vestir nas dependências do DOI, a exemplo de todos os outros, não tinha cinto”.
Os advogados Heleno Cláudio Fragoso, Sérgio Bermudes, Marco Antônio Rodrigues Barbosa e Samuel Mac Dowell de Figueiredo sustentaram que o artigo 107 da Constituição Federal obriga as pessoas jurídicas de direito público a responder pelos danos que os seus funcionários causarem a terceiros.
Já o artigo 15 do Código Civil Brasileiro é expresso: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que, nessa qualidade, causem dano a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”.
A prisão foi ilegal e arbitrária, pois efetuada com desatenção ao artigo 153, parágrafo 12 da Carta Magna. Ao torturarem Vladimir Herzog, os agentes da União Federal desrespeitaram o parágrafo 14 do artigo 153 da Constituição Federal, que impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário, constituindo abuso de autoridade nos expressos termos dos artigos 3º e 4º de Lei Federal nº 4.898, de 9-12-65.
Na forma do artigo 4º do Código de Processo Civil, Clarice Herzog e seus filhos, ao invés de postularem a condenação da União Federal, pediram apenas que fosse declarada a sua obrigação de indenizá-los, em decorrência dos fatos que culminaram com a morte de seu marido e pai. Queriam uma reparação moral.
A União Federal, através do procurador da República, Tito Bruno Lopes, em 2 de julho de 1976, contestou a ação, alegando que os autores da ação eram carecedores por se basearem em fatos considerados inexistentes pela Justiça Militar. Aduziu que a responsabilidade civil é independente da criminal e que, de conformidade com o artigo 1.525 do Código Civil não se poderia questionar sobre o fato ou quem seja o seu autor, quando estas questões já tenham sido decididas no crime. Acrescentou ainda que a ação declaratória era inepta, porque escondia, subjacentemente, uma ação condenatória conta a União Federal.
No mérito, confirmou a existência de suicídio, conforme os laudos dos legistas Arildo de T. Viana e Harry Shibata, que concluíram pela inexistência de sinais de violência ou tortura, acrescentando não ter havido culpa dos funcionário, que agiram no estrito cumprimento do dever legal.
O juiz do processo era o dr. João Gomes Martins Filho, da 7ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, que, no passado, fora deputado pelo PSD na Constituinte de 1946 e candidato a Vice-Governador em 1951 na chapa de Prestes Maia.
Depois de devidamente instruído o processo, com a colheita de todas as provas e as inquirições de todas as testemunhas, o magistrado federal preparou a sentença que seria lida em 26 de junho de 1978, uma segunda-feira.
Entretanto, quatro dias antes da audiência de publicação de sentença, chegou à 7ª Vara Federal um telex de Brasília informando que havia sido concedida uma medida liminar junto ao Tribunal Federal de Recursos, requerida pela União, sendo relator do mandado de segurança o ministro Jarbas Nobre.
Na segunda-feira, o juiz João Gomes Martins não pôde ler a sentença, em virtude dessa liminar. A manobra foi suficiente para as finalidades pretendidas, porque a Justiça Federal entrou em recesso no mês de julho, e logo no dia 2 deste mês o juiz João Gomes Martins completou 70 anos, aposentando-se, compulsoriamente, nos termos da lei em vigor.
Outro magistrado assumiu a 7ª Vara da Justiça Federal, Márcio José de Moraes, casado, 32 anos, e pai de dois filhos. Em 29 de outubro de 1978, o juiz Márcio José de Moraes prolatou a tão esperada decisão no processo nº 136//76, cuja parte dispositiva foi a seguinte: “Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e o faço para, nos termos do artigo 4º, inciso I do Código de Processo Civil, declarar a existência de relação jurídica entre os autores e a ré, consistente na obrigação desta indenizar aqueles pelos danos materiais e morais decorrentes da morte do jornalista Vladimir Herzog, marido e pai dos autores, ficando a ré condenada em honorários advocatícios que, a teor do artigo 20, parágrafo 4º do mesmo diploma legal, fixo em Cr$ 50.000,00 (cinqüenta mil cruzeiros).
Determino, outrossim, com fundamento no artigo 40 do Código de Processo Penal, sejam extraídas e remetidas ao sr. Procurador-geral da Justiça Militar, para as providências legais que couberem, cópias autenticadas pela Secretaria deste sentença e de todos os depoimentos das testemunhas ouvidas por este Juízo. Custas ex-lege. Oportunamente, observadas as cautelas legais, subam os autos ao Egrégio Tribunal Federal de Recursos, para os fins do duplo grau de jurisdição.”
Foi uma sentença corajosa que estarreceu o país, devolvendo aos brasileiros a confiança e o respeito pelo Poder Judiciário. A decisão foi confirmada pelo Tribunal Federal de Recursos.
O grande advogado Raymundo Faoro, então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, escreveu sobre o episódio: “Será esta uma história que mostrará a possibilidade, com a ordem jurídica, de abater o autoritarismo, sempre que se levantem, dentro de seus próprios muros, advogados e juízes, advogados que sejam verdadeiramente advogados e juízes de verdade, ainda que tolhidos pelas restriçõesàs suas prerrogativas e garantias”.
O juiz federal João Gomes Martins Filho jamais revelou o teor da sentença que redigiria, mas não fora proferida. Sem embargo, escreveu uma carta ao seu colega Márcio José Moraes, cujos excertos reproduzimos:

“Chegamos, por palavras diferentes, à mesma conclusão... Senti uma tristeza imensa ao verificar até que ponto podia chegar a tentativa de sufocar uma manifestação do Poder Judiciário... Não poderia desconfiar de um golpe dessa natureza e tanto é assim que havia marcado com antecedência o dia e hora para a prolação da sentença.
Veio o telex, anunciando a proibição da leitura e requerendo também informações sobre o processo no mandado de segurança impetrado pelo procurador, que se considera o detentor único da verdade e o cavaleiro andante da honra e do renome nacional. Alegava que a sentença poria em risco a segurança do Estado, e que, porisso, deveria ser impedida, como se a declaração de responsabilidade pela tortura e morte de um homem pudesse constituir-se em perigo para a honra e a segurança das instituições.
Ninguém sabia o teor da sentença, a não ser eu.
O Brasil inteiro ficou sabendo por esse telex qual seria o seu teor, pois ele já confessava a culpa publicamente. Ninguém mais duvidava daí em diante das conclusões do juiz... Lançou-se sobre o Poder Judiciário a dúvida a respeito da dignidade, da coragem e da honradez do juiz que me substituísse. Supôs-se que com o afastamento de um, a lição permaneceria com o outro e que talvez a verdade não aflorasse com a veemência que se deduzia da ação.
Enganaram-se os que assim pensaram porque, talvez mais forte, mais elegante e mais alta se elevou a voz de um jovem magistrado para deixar bem claro que ainda há juízes no Brasil...”

Fonte: Grandes Advogados, Grandes Julgamentos - Pedro Paulo Filho - Depto. Editorial OAB-SP
(Advogados Heleno Fragoso, Sérgio Bermudes, Marco Antônio R. Barbosa e Samuel Mac Dowell de Figueiredo)